29.10.15

Sem emprego nem desempregados?

Disciplinar o trabalho demorou muito tempo e consumiu muitas energias. O trabalho saiu de casa para se exercer num espaço próprio, num certo horário, protegido por um contrato específico, conferindo direitos associados e nasceram as sociedades do assalariamento.
Agora, talvez todo este edifício ameace voltar a ruir e o trabalho a ocupar todas as nossas vidas, rompendo os diques em que o contivemos. Mas tal pode ocorrer no contexto de transformações tais que uma parte do trabalho seja apropriado pelas chamadas máquinas inteligentes e outra aconteça dentro do nosso quotidiano, destruindo o lazer, fazendo de muito do nosso tempo um tempo "de venda". Ou seja, diz Branko Milanovic, ficando nós sem trabalho (o nosso trabalho clássico) e não desempregados (porque vamos transformar todo o nosso tempo em tempo comercial, conduzindo para a Uber, alugando quartos, etc, etc).
Aqui fica uma descrição do cenário (e um convite a ler o texto todo):

"one scenario that would combine lots of labor substitution with heavy segmentation of tasks (and much more intense labor discipline made possible thanks to automation). In that case, jobs to which we have become accustomed would cease to exist: lots of today’s functions will be automated, and for many others, “amateurs”, not professionals, would do them.   
And we should not be making the “lump of labor” fallacy: the amount of jobs is not limited to the jobs that we know today. There will be entirely new jobs that we cannot even imagine. 

(...)
Technology will create new jobs, and if anything, I think we shall have more to worry about not having any free time than having too much. As commercialization of our lives progresses, we  shall perceive (as we already do) every hour spent, without directly or indirectly contributing  to more money as wasted. Unemployment will become impossible. Being unemployed implies that you are specialized and that there is a (relative) shortage of such specific jobs.  But not so in a new economy: everybody can carry Thai food from one place to another, everybody can exhibit himself or herself naked on the Internet, everybody can open doors, pack bags, or even write blogs. No one would be unemployed and no one would hold a job.

26.10.15

"Onde estavas tu...?"

Vemos, ouvimos e lemos coisas... Por vezes perguntamo-nos, com alguma amargura, "onde estavas tu no 25 de Abril?". E cada um de nós tem o seu próprio 25 de Abril no espírito ao pensá-lo. E cada um de nós tem o dever de se libertar dele para continuar a ser capaz de separar bem o que está certo do que está errado. O que está certo são as boas ideias e não o sítio onde as pessoas estiveram na  esquina anterior da história em que elas estiveram em causa. Pensando assim pode olhar-se mais positivamente o futuro, seja a pensar o governo, a justiça, quaisquer outras instituições ou simplesmente a viver as  nossas vidas quotidianas.

22.10.15

Cavaco Silva lamenta não tutelar o PS.

Ao invés da leitura dos resultados eleitorais que lhe competia, Cavaco Silva aproveitou o discurso de hoje para se lamentar publicamente por não exercer tutela sobre a direcção do PS. Mas acrescentou que a alternativa dos partidos à coligação de direita é "claramente inconsistente". 
O PS, o PCP e o BE têm poucos dias para demonstrar aos portugueses que a avaliação de Cavaco Silva é errada e a sua tentativa de condicionar os deputados é vã, sob pena de lhe darem a posteriori a razão que não lhe assistia - confio - quando falou.

16.10.15

A diferença entre um acordo e uma negociata

A diferença entre um acordo e uma negociata reside na solidez política da solução a que chega. A simples promessa entre partidos de viabilização dos Orçamentos de Estado seria ainda uma negociata, já a aceitação de um conjunto de medidas nucleares para a legislatura, essenciais à estratégia nacional para o crescimento sem comprometer unilateralmente a presença no Euro, seria o patamar mínimo para um acordo político.
Se António Costa se contentasse com uma negociata à esquerda acabaria a dar corpo à maioria negativa, sem programa nem objectivos, que recusou na noite eleitoral.
Se o PCP e o BE recusassem um programa comum mínimo para a legislatura acabariam a dar razão ao que Sérgio Sousa Pinto disse sobre serem desde sempre e na visão dele para sempre adversários e não potenciais aliados do PS.
Se António Costa conseguir um acordo para um programa mínimo para a legislatura, para além de dar à esquerda uma oportunidade para desbloquear o sistema político, dá aos portugueses uma oportunidade de testar uma alternativa e remete ao ridículo os comentários apocalípticos que por aí pululam. Para além de que dá ao PS a oportunidade de se livrar das tentações de desvio para o centro, que é uma maneira polida de dizer deslizamento para a direita.


(Publicado no Facebook)

13.10.15

As esquerdas que querem mudar o mundo sabem nadar



Francisco Louçã não me percebeu. Problema dele e meu. Espero que não me imaginem a fazer ultimatos de fidelidade a ninguém, menos ainda ao BE, a quem nunca fiz juras de amor. Mas se imaginam, problema vosso. Desejo apenas que as e os dirigentes do BE percebam melhor António Costa, que conta com eles para mudar o país, do que Louçã me percebeu a mim, que analiso o actual quadro político apenas com as minhas convicções. E que não deixem de atravessar o Rubicão por receio de se afogarem. 
As esquerdas que querem mudar o mundo sabem nadar. As outras são puras nas suas certezas e pequeninas na sua capacidade de influenciar.

(Publicado no Facebook)

Pensamento pós-PREC

A possível alternativa ao governo da PAF exige pensamento pós-PREC. Oxalá os nostálgicos do PREC saibam remeter-se ao seu anacronismo.

8.10.15

Com mandato para descontinuar governo de Passos Coelho, a nova maioriaterá que formar-se em bases sólidas

As eleições legislativas não são um campeonato de futebol, em que o primeiro é o vencedor. 
As forças vencedoras de uma eleição são as que expressam a maior vontade comum possível. Por isso a Constituição pede ao Presidente da República que indigite o Primeiro-Ministro tendo em conta os resultados eleitorais e não gera nenhum automatismo de indigitação da força mais votada.
Dir-me-ão que até hoje, entre nós, os Primeiros-Ministros sempre vieram das forças eleitorais vencedoras. Não é, contudo, verdade, pois já houve os governos de iniciativa presidencial, que nem sequer vieram dos partidos. Mas, se o fosse, seria por mera razão circunstancial, já que o Parlamento português esteve até agora bloqueado pela exclusão absoluta do PCP das hipóteses de formação de governo, exclusão imposta também a ou aceite pelo Bloco desde que passou a ter representação parlamentar.
Essa circunstância é, aliás, uma especificidade portuguesa, não seguida pela generalidade dos países que têm um sistema eleitoral proporcional. Há hoje vários países da Europa em que o primeiro-ministro lidera uma coligação formada pela segunda força mais votada e seus aliados, depois de isolada a força colocada em primeiro lugar.
Há mesmo precedentes históricos tão importantes quanto a chegada ao poder na Alemanha de Willi Brandt à frente de uma coligação com os liberais, depois de a CDU ter sido a força mais votada. E esse governo teve enorme relevância mundial.
No nosso sistema, cabe aos partidos interpretar o mandato que o povo lhes deu e agir no respeito desse mandato. O PS disse claramente que queria um mandato para governar diferente de e sem Passos Coelho. Ao afastar-se disto desrespeitaria o voto que pediu. Pode respeitar esse voto na oposição ou formando uma maioria nova. E é aqui que a história está a acontecer.
A grande mudança a que estamos a assistir e que parece que muitos ainda não perceberam que está mesmo a acontecer resulta de o PS há um ano ter rejeitado a exclusão do PCP e do BE das responsabilidades governativas e de o Comité Central do PCP ter esta semana levantado a auto-inibição que o PCP se tinha reflexamente imposto desde o 25 de Novembro.
Com estas mudanças passou a ser possível haver uma alternativa maioritária no parlamento à coligação de direita, caso o Bloco não pare agora o relógio da história que Costa e Jerónimo puseram a andar.
Mas não podem o PS, o PCP ou o BE ter ilusões sobre o que se está a passar. 
Mudar o rumo da história é sempre mais difícil que deixar-se levar na corrente das tradições.
O possível entendimento destas forças não resulta de uma vitória esmagadora e os resultados eleitorais permitem leituras contraditórias, forçando a que todas as suas interpretações reflictam as perspectivas políticas dos seus autores.
O escrutínio político e mediático de um entendimento entre PS, PCP e BE será intenso e na fase inicial hostil, porque baseado em teoremas que as pessoas entenderam como axiomas e transformaram em leis políticas sobre a impossibilidade de uma relação de cooperação a nível nacional do PS com as forças à sua esquerda.
O PS será atravessado pela fractura identitária entre os que o reconhecem essencialmente como a garantia de que os comunistas nunca chegarão ao  poder e os que nele se revêem como força lider das esquerdas portuguesas.
No BE, certamente, talvez também no PCP, as visões mais sectárias tudo farão para desestabilizar um acordo de legislatura com o PS, o mesmo acontecendo com a ala direita do PS.
Por tudo isto, um entendimento entre o PS, o PCP e o BE que seja frouxo, dissimulado ou desresponsabilizador de qualquer das partes conduziria os seus autores ao descrédito e a esquerda a um beco sem saída.
Na minha visão, o PS tem a obrigação de não deixar que subsista qualquer dúvida de que está convicto de que recebeu dos portugueses um mandato para descontinuar o governo liderado por Passos Coelho e não para o suavizar. Mas o PCP e o BE não podem deixar que haja qualquer sombra de dúvida de que não estão a negociar entendimentos com reserva mental ou vontade de tergiversar.
A questão política de fundo que legitima as conversações entre a esquerda é simples. A coligação de direita está isolada e teve a rejeição da maioria dos eleitores do país.
Agora é preciso confiança entre os partidos para que o processo tenha qualquer seguimento. E essa confiança passa por dizer aos portugueses em que é que o programa de coligação de esquerda se baseia, quais são as cedências recíprocas e qual é o resultado final comumente aceite. 
Como passa necessariamente pela vinculação dos subscritores de um acordo para uma maioria de esquerda ao exercício de  funções governativas. 
Não nos iludamos. Ou muda tudo na relação entre os partidos de esquerda ou esta  negociação é um mero fogo fátuo.
O sucesso deste entendimento não será a formação de um governo, será a capacidade de levar esse governo até ao fim da legislatura, mudando de política, conseguindo crescimento económico e fazendo diminuir as desigualdades.
António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins têm uma tarefa histórica em mãos. Ou a realizam com sucesso ou são esmagados por ela e fica tudo como dantes.

7.10.15

Será mais brevemente do que parecia que a esquerda vai atravessar o rubicão?

Os resultados eleitorais acabaram por acelerar uma transformação que pode ser profunda no espectro político português. 
O comportamento do Presidente da República para o qual a designação de "atípico" é um eufemismo respeitoso, se visava pressionar o PS a aceitar o entendimento com Passos Coelho teve o condão de o tornar mais difícil e mais impopular ainda.
Os discursos públicos do PCP e do BE permitem pensar que desbloquear a esquerda é agora - como nunca antes o fora - uma possibilidade que merece ser equacionada.
A recusa do PS em enfeudar-se à viabilização de um governo com políticas contrárias às suas ao mesmo tempo que pela primeira vez na história da democracia força o PCP e o BE a clarificarem se estão prontos a passar da retórica à construção de alternativas, faz funcionar o nosso sistema político assente na proporcionalidade do modo para o qual foi concebido, como gerador de coligações parlamentares alternativas.
É certo que a campanha eleitoral não deu ao BE e ao PCP um mandato claro para renunciar à renegociação unilateral da dívida nem para comprometer estes partidos com metas políticas compatíveis com a permanência de Portugal no Euro.
Mas cabe a estes partidos interpretar o que os eleitores lhes quiseram dizer no voto. terão os eleitores do PCP e do BE votado para sair do euro ou para que estes partidos garantissem a saída de Passos Coelho e o fim do ciclo de "ir além da troika"? 
Eu tenho umas ideias sobre isto, mas aguardo com ansiedade democrática para ver se é desta que o PCP e o BE atravessam o rubicão ou fica tudo como dantes. E, se ficar, não venham dizer que é por causa do PS.

6.10.15

A austeridade ganhou ou perdeu as legislativas? E vai ganhar ou perder as presidenciais?


Há duas perguntas incómodas mas a meu ver decisivas na interpretação dos resultados eleitorais de domingo e na escolha dos caminhos políticos nos meses que aí vêm. A austeridade ganhou ou perdeu as eleições? Se perdeu, há capacidade política e apoio popular suficientes para lhe gerar alternativas políticas nesta legislatura?
Se a austeridade tiver perdido, como acho que perdeu, a prioridade principal é a da construção de alternativa consistente e com apoio popular à essa austeridade, o que o "quadro macro-económico" do PS manifestamente não conseguiu e implicaria muito trabalho político, com espíritos abertos em toda a esquerda, que está por fazer.
Se as esquerdas escolherem o caminho da construção de alternativas, o modo como se relacionam com as candidaturas presidenciais é uma grande prioridade imediata. Vai Portugal eleger um Presidente da República solidamente comprometido com as alternativas à austeridade ou vai escolher um Presidente que referende o caminho actual?
O empenhamento das esquerdas nas presidenciais e a capacidade política para gerir o caminho que escolherem vai determinar se o pêndulo está ainda a balançar contra o PSD+CDS ou se está já de regresso ao crescimento da direita.

(Publicado também no Facebook)